7 de março de 2016

De Volta a Twin Peaks - Segunda Temporada, Episódio 4

De Volta a Twin Peaks - Segunda Temporada, Episódio 4

O que ALF e Twin Peaks têm em comum? Além de baixinhos de outros planos/mundos e uma certa obsessão dos personagens por comida, ambas as séries tiveram episódios escritos por Jerry Stahl. Ou nem tanto, no caso de Twin Peaks...

Jerry Stahl entrou para o time de roteiristas de Twin Peaks a pedido do agente de Mark Frost. Por ser um cara meio estranho e inteligente, Harley Peyton comentou que a escolha parecia certa, mas estavam todos enganados, pois Stahl era um junkie do tipo que abandonava reuniões para aplacar seu vício, isso quando não desaparecia após telefonemas misteriosos.

Segundo Mark Frost, o script que Stahl entregou era “completamente incompreensível, inútil, incompleto” e, para piorar, “tinha manchas de sangue”. Estrago feito, Frost tomou as rédeas e, pela primeira vez na série, reescreveu o roteiro do zero com a ajuda de Harley Peyton e Robert Engels. Mesmo assim, Jerry Stahl ainda foi creditado.


Dirigido por Todd Holland, que tem no currículo o comercial do NES filme O Gênio do Videogame, este décimo primeiro episódio de Twin Peaks começa com a câmera saindo lentamente de um túnel escuro, enquanto duas vozes intercalam-se etéreas: “Papai...” “Leland...” “Papai...” “Leland...”

O túnel parece a toca de algum animal, mas trata-se de um mero buraco no teto da sala onde Leland Palmer está sendo interrogado após sua prisão sob a suspeita do assassinato de Jacques Renault. A cena é bela e ao mesmo tempo triste, mérito dos diálogos e, principalmente, da atuação de Ray Wise, pois Leland, em muito tempo, parece enfim desperto, como se tivesse escalado a toca do coelho para voltar à realidade. É um Leland trágico, mas longe da caricatura que estávamos acostumados a ver. Sua dor é real e sua perda absoluta.


Quando completou doze anos, Laura Palmer ganhou um diário. Nele registrou tudo que acreditava não poder conversar com ninguém: da sua primeira experiência com drogas ao seu vício definitivo, das suas primeiras fantasias sexuais às orgias com Leo Johson, do seu tédio infantil à sua angústia pelos frequentes contatos com o cruel BOB...

Com sua vida dupla, Laura é a maior representante da dualidade de Twin Peaks, dualidade essa que agora vemos também refletida nos dois diários mantidos pela garota: um que ela forjou com as memórias e registros da boa moça aos olhos de todos na cidade; outro com os relatos mais sombrios da verdadeira Laura Palmer.

Pouco antes de morrer, Laura deixou seu diário secreto com o recluso Harold Smith. Em vez de entregá-lo à polícia, Harold guardou o caderno consigo, um souvenir daquela que foi, durante algum tempo, seu único contato com o mundo exterior.


Donna, ressentida pelo fato do seu relacionamento com o entediante James não ter dado certo, aproxima-se cada vez mais do esquisitão Harold, a ponto dele lhe mostrar o diário secreto da amiga.

Após a leitura de um trecho escolhido de forma devidamente perversa por Harold, Donna tem um momento raro de lucidez e faz a pergunta mais óbvia: esse diário não deveria estar com a polícia? A resposta: “Não. (...) eu li o diário todo... e a solução não está nele.”

Pode ser que Harold esteja falando a verdade, o que não parece, como pode ser que ele seja o assassino e use da agorafobia como álibi para a noite que Laura foi assassinada. O que ele não imagina é que Donna pretende fazer o que qualquer pessoa razoável como ela (ou James) faria: tentar recuperar o diário por conta própria, quando deveria estar batendo na porta da delegacia de polícia.


Do ponto de vista da investigação principal, este é o primeiro episódio no qual ela é quase deixada de lado, pois – tirando o fato de que Hawk descobre que nenhum Robertson foi vizinho do avô de Leland –, tudo se resume, praticamente, a uma pataquada de Andy, que leva Cooper a um insight meio... forçado até mesmo para os padrões da série.

Também é forçado o fato de que a prisão de Leland não cause comoção alguma na cidade, tão pacata e pequena ao ponto de nem mesmo dispor de um tribunal para julgamento dos crimes cometidos ali. Mais estranho, entretanto, é que Sarah Palmer não apareça após a prisão do marido, ou que Maddy, que esteve com o tio quando ele foi levado pela polícia, flana tranquilamente por aí, como se tivesse esquecido do fato.


Esses furos e exageros podem ser atribuídos à necessidade de reescrita do roteiro por três pessoas diferentes, mas eles sempre existiram. O problema é que nesse episódio – que parece carecer de uma certa integridade como uma grande colcha de retalhos emendada às pressas – essas falhas ficam mais evidentes.

Diz o provérbio que depois da tempestade vem a bonança, mas os raios que atingem Twin Peaks na noite da segunda-feira, 6 de março de 1989, são apenas o prelúdio de uma tempestade ainda maior: a revelação do assassino de Laura Palmer, o maior trunfo e a maior maldição de uma série tão familiar à dualidade.

- Ouvindo: Hibou - Dissolve